“A Europa foi durante séculos, através das suas especificidades, das suas religiões (…) da diversidade das suas opções filosóficas e ideológicas uma «arena» histórica e espiritual onde a questão vital do «sentido» da nossa existência se dirimiu, deixando como rasto grandioso a «Odisseia», o «De Rerum Natura», a «Cidade de Deus», a «Divina Comédia», «Hamlet», a «Ética», o «Fausto» ou a «Recherche», monumento incomparável da nossa, na aparência definitiva, perdição ou consubstanciação com o tempo. É mais do que suficiente para conferir uma «identidade» ao sonho de uma Europa política e economicamente unificável mas, mesmo desse passado incomparável, a actual pulsão cultural europeia, nas suas expressões mais significativas, não sabe o que fazer. Já não queima, como há vinte anos os seus anais sagrados no pátio da sua Universidade Mater. Cheia de ciência, em plena revisão da sua mitologia cultural iluminista, consciente da sua riqueza (ou da riqueza dos ricos nela que não são forçosamente europeus), mas não menos consciente de já não ser politicamente o centro do universo, esta Europa tem tudo, salvo uma ideia condutora digna da sua vocação milenária que a centre em si e lhe dê uma alma.”
Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou as Duas Razões